o mundo como o conhecíamos acabou

não tenhamos ilusões: a privacidade (já) não existe. por muito que queiramos ou tentemos fugir dessa realidade - não tendo redes sociais, não subscrevendo serviços online, etc. -, não há como escapar. a proteção de dados é uma medida útil, mas que peca por tardia. os nossos dados andam aí, pelo mundo virtual fora. basta pensarmos na facilidade com que chegamos à fala com alguém, hoje em dia. tudo é de fácil acesso e isso pode ser assustador. 
pessoalmente, tendo a ver a proliferação de informação como uma coisa positiva: muito daquilo que nos chega atualmente é direcionado e personalizado, de acordo com os nossos gostos, interesses e personalidade. 
mas depois vi The Great Hack, um documentário da Netflix sobre o escândalo que envolveu uma empresa britânica, a Cambridge Anaytica, e o Facebook, que contribuíram para a vitória de Trump nas eleições. por cá, confesso, não me apercebi da dimensão desta alegada violação de privacidade, a não ser quando o Facebook foi acusado de ter disponibilizado os dados dos seus utilizadores. na altura, pareceu-me uma coisa tão absurda, daquelas que não nos afeta, porque os nossos dados andam aí, todas as empresas os partilham (ou partilhavam) e, além disso, as eleições nos EUA eram lá longe. que pensamento ingénuo e pouco inteligente!
nos primeiros minutos deste documentário ficamos logo com a sensação de que se trata de uma coisa séria, global e perturbadora. não se trata apenas de cedência de dados, mas daquilo que se faz com eles. esta empresa, a Cambridge Analytica, sediada em Londres, foi contratada para manipular os eleitores americanos, de forma a que votassem no Trump. mas como é isso possível, se o voto é individual e secreto? pois. o que o documentário nos explica é que esta empresa estudou o perfil de cada eleitor no Facebook, através de cinco mil pontos de contacto, de forma a analisar a sua personalidade e encaixá-lo em determinados grupos, mais ou menos manipuláveis. a partir do cruzamento de dados e da análise de likes, rede de amigos, interações, comentários, utilização do cartão de crédito, compras online, pesquisas, tudo serviu para traçar o perfil dos indivíduos. aos mais vulneráveis foram direcionadas fake news, como artigos ou vídeos falsos, que criaram nas suas redes aquilo que eles mais temem. um exemplo prático: um utilizador que segue páginas ou faz pesquisas ou lê notícias relacionadas com insegurança provocada pela emigração; a esse utilizador foram apresentadas como verdadeiras notícias falsas, de proximidade, que o fizeram temer os emigrantes mexicanos, por exemplo. claro que esse utilizador - também eleitor - está susceptível a essa informação e, no momento de escolher o seu candidato a presidente, vai optar por alguém que lhe garanta a sua segurança. tudo isto é de uma gravidade sem precedentes, que põe em causa o livre arbítrio e o sistema democrático.
este é apenas um exemplo de um documentário muito bem feito, com vários testemunhos, sendo o principal o de Brittany Kaiser, a ativista de direitos humanos que se juntou à Cambridge Analytica e, ao ser confrontada com os resultados imediatos do seu trabalho, percebeu que estava do lado errado do que realmente queria deixar para a posteridade. a luta pela criação de uma lei que garanta que os dados de cada um passam a ser considerados direitos humanos é hoje a sua bandeira. como devia ser a de todos nós. vejam, porque, se não mudar a vossa vida, The Great Hack mudará pelo menos a forma como olham para a realidade em que vivemos.

[a propósito do tema, podem também ler este artigo, que cita Foucault: "quanto maior o número de informações em relação aos indivíduos, maior a possibilidade de controle de comportamento desses indivíduos"]


Comentários

Diana R. disse…
Esta é uma nova realidade (a da manipulação e da venda de dados) que me aterroriza, sobretudo porque pouco ou nada se pode fazer.
Se é certo que a nova legislação vem estabalecer regras, não é menos certo que continuaremos à mercê dos gigantes da tecnologia e de quem vive daquilo que mostramos na internet.
Joana disse…
já que não há como escapar, cabe-nos a nós definir os nossos limites, através do que partilhamos.
obrigada pelo comentário, Diana. :)
Dulce Pedroso disse…
Olá Joana. Há tanto tempo que não dizes nada... espero que estejas bem.
Beijinhos e umas boas festas :*